Paulo Leminski

 

Bem no fundo

 

No fundo, no fundo,

bem lá no fundo,

a gente gostaria

de ver nossos problemas

resolvidos por decreto

 

a partir desta data,

aquela mágoa sem remédio

é considerada nula

e sobre ela — silêncio perpétuo

 

extinto por lei todo o remorso,

maldito seja quem olhar pra trás,

lá pra trás não há nada,

e nada mais

 

mas problemas não se resolvem,

problemas têm família grande,

e aos domingos

saem todos a passear

o problema, sua senhora

e outros pequenos probleminhas.

 

 

Dor elegante

 

 

Um homem com uma dor

É muito mais elegante

Caminha assim de lado

Com se chegando atrasado

Chegasse mais adiante

 

Carrega o peso da dor

Como se portasse medalhas

Uma coroa, um milhão de dólares

Ou coisa que os valha

 

Ópios, édens, analgésicos

Não me toquem nesse dor

Ela é tudo o que me sobra

Sofrer vai ser a minha última obra

 

Invernáculo

 

Esta língua não é minha,

qualquer um percebe.

Quem sabe maldigo mentiras,

vai ver que só minto verdades.

Assim me falo, eu, mínima,

quem sabe, eu sinto, mal sabe.

Esta não é minha língua.

A língua que eu falo trava

uma canção longínqua,

a voz, além, nem palavra.

O dialeto que se usa

à margem esquerda da frase,

eis a fala que me lusa,

eu, meio, eu dentro, eu, quase.

 

O que quer dizer

 

O que quer dizer diz.

Não fica fazendo

o que, um dia, eu sempre fiz.

Não fica só querendo, querendo,

coisa que eu nunca quis.

O que quer dizer, diz.

Só se dizendo num outro

o que, um dia, se disse,

um dia, vai ser feliz.

 

M. de memória

 

Os livros sabem de cor

milhares de poemas.

Que memória!

Lembrar, assim, vale a pena.

Vale a pena o desperdício,

Ulisses voltou de Tróia,

assim como Dante disse,

o céu não vale uma história.

um dia, o diabo veio

seduzir um doutor Fausto.

Byron era verdadeiro.

Fernando, pessoa, era falso.

Mallarmé era tão pálido,

mais parecia uma página.

Rimbaud se mandou pra África,

Hemingway de miragens.

Os livros sabem de tudo.

Já sabem deste dilema.

Só não sabem que, no fundo,

ler não passa de uma lenda.

 

Parada cardíaca

 

Essa minha secura

essa falta de sentimento

não tem ninguém que segure,

vem de dentro.

Vem da zona escura

donde vem o que sinto.

Sinto muito,

sentir é muito lento.

 

Razão de ser

 

Escrevo. E pronto.

Escrevo porque preciso,

preciso porque estou tonto.

Ninguém tem nada com isso.

Escrevo porque amanhece,

E as estrelas lá no céu

Lembram letras no papel,

Quando o poema me anoitece.

A aranha tece teias.

O peixe beija e morde o que vê.

Eu escrevo apenas.

Tem que ter por quê?

 

Aviso aos náufragos

 

Esta página, por exemplo,

não nasceu para ser lida.

Nasceu para ser pálida,

um mero plágio da Ilíada,

alguma coisa que cala,

folha que volta pro galho,

muito depois de caída.

 

Nasceu para ser praia,

quem sabe Andrômeda, Antártida

Himalaia, sílaba sentida,

nasceu para ser última

a que não nasceu ainda.

 

Palavras trazidas de longe

pelas águas do Nilo,

um dia, esta pagina, papiro,

vai ter que ser traduzida,

para o símbolo, para o sânscrito,

para todos os dialetos da Índia,

vai ter que dizer bom-dia

ao que só se diz ao pé do ouvido,

vai ter que ser a brusca pedra

onde alguém deixou cair o vidro.

Não e assim que é a vida?

 

Amar você é

coisa de minutos…

 

Amar você é coisa de minutos

A morte é menos que teu beijo

Tão bom ser teu que sou

Eu a teus pés derramado

Pouco resta do que fui

De ti depende ser bom ou ruim

Serei o que achares conveniente

Serei para ti mais que um cão

Uma sombra que te aquece

Um deus que não esquece

Um servo que não diz não

Morto teu pai serei teu irmão

Direi os versos que quiseres

Esquecerei todas as mulheres

Serei tanto e tudo e todos

Vais ter nojo de eu ser isso

E estarei a teu serviço

Enquanto durar meu corpo

Enquanto me correr nas veias

O rio vermelho que se inflama

Ao ver teu rosto feito tocha

Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha

Sim, eu estarei aqui

 

 

Adminimistério

 

Quando o mistério chegar,

já vai me encontrar dormindo,

metade dando pro sábado,

outra metade, domingo.

Não haja som nem silêncio,

quando o mistério aumentar.

Silêncio é coisa sem senso,

não cesso de observar.

Mistério, algo que, penso,

mais tempo, menos lugar.

Quando o mistério voltar,

meu sono esteja tão solto,

nem haja susto no mundo

que possa me sustentar.

 

Meia-noite, livro aberto.

Mariposas e mosquitos

pousam no texto incerto.

Seria o branco da folha,

luz que parece objeto?

Quem sabe o cheiro do preto,

que cai ali como um resto?

Ou seria que os insetos

descobriram parentesco

com as letras do alfabeto?

 

Sintonia para pressa e presságio

 

Escrevia no espaço.

Hoje, grafo no tempo,

na pele, na palma, na pétala,

luz do momento.

Soo na dúvida que separa

o silêncio de quem grita

do escândalo que cala,

no tempo, distância, praça,

que a pausa, asa, leva

para ir do percalço ao espasmo.

 

Eis a voz, eis o deus, eis a fala,

eis que a luz se acendeu na casa

e não cabe mais na sala.

 

Não discuto

 

não discuto

com o destino

o que pintar

eu assino

 

A lua no cinema

 

A lua foi ao cinema,

passava um filme engraçado,

a história de uma estrela

que não tinha namorado.

 

Não tinha porque era apenas

uma estrela bem pequena,

dessas que, quando apagam,

ninguém vai dizer, que pena!

 

Era uma estrela sozinha,

ninguém olhava pra ela,

e toda a luz que ela tinha

cabia numa janela.

 

A lua ficou tão triste

com aquela história de amor

que até hoje a lua insiste:

— Amanheça, por favor!

 

Sem título

 

Eu tão isósceles

Você ângulo

Hipóteses

Sobre o meu tesão

 

Teses sínteses

Antíteses

Vê bem onde pises

Pode ser meu coração